Durante a sua visita à EPM-CELP, a presidente da Ciência Viva, Rosalia Vargas, destacou o entusiasmo e o empenho dos professores da escola, defendendo que o ensino da ciência deve integrar o questionamento e o pensamento crítico desde cedo. Para ela, a tecnologia deve ser entendida como uma ferramenta ao serviço da humanidade e não como uma força autónoma. “Em ciência e na sociedade, nada deve ser ignorado. O conhecimento é o nosso melhor escudo”.
Nas linhas que se seguem, a presidente reflete também sobre os limites e possibilidades da inteligência artificial. “Na verdade, a inteligência artificial resulta da inteligência humana. E esse é um binómio que não podemos esquecer, pois diz muito sobre o trabalho dos cientistas, das mulheres e dos homens da ciência que se dedicam a essas áreas de ponta, áreas de fronteira, que se desenvolvem a um ritmo avassalador”, esclarece.
Como avalia o papel da curiosidade e da experimentação no processo educativo?
O papel da curiosidade e da experimentação é o motor da aprendizagem. Hoje sabemos que se aprende de muitas maneiras e em muitos lugares. A escola não é o único sítio onde se aprende, mas continua a ser, talvez, o melhor. Porque é aquele que permanece inesquecível, onde os alunos socializam e crescem em conjunto. E, portanto, quando isso acontece com professores que estimulam a curiosidade e a pesquisa, temos o que é mais importante.
Tem defendido que a ciência deve estar próxima das pessoas. Como tornar a ciência mais acessível e inspiradora para as novas gerações, especialmente em contexto africano?
Essa pergunta é muito interessante, e difícil, por um lado, mas fácil pelo outro. De facto, a ciência é universal. Costuma-se dizer que a ciência é igual em todo o mundo. Quem quiser construir uma ponte, por exemplo, entre dois países, desenha a ponte e depois cada país começa a construir do seu lado. Veja o caso de Portugal e Espanha: somos vizinhos, e Espanha começa a construir do outro lado.
A verdade é que vão continuando e a ponte encontra-se bem, a meio, no sítio combinado. Isso significa, de uma forma muito simples, que o conhecimento científico deve ser partilhado. É um conhecimento universal e profundamente coletivo. Veja, por exemplo, os prémios Nobel: os da Química, da Medicina ou da Física são geralmente atribuídos a pequenos grupos, a equipas de três ou quatro investigadores. Isso mostra que a ciência é um processo; e um processo coletivo, muitas vezes com pessoas de diferentes países. Já não há aquela ideia do cientista fechado na sua torre de marfim, mas sim aberto à cooperação, à parceria. É assim que se constrói o conhecimento científico.
Mas, por outro lado, é muito interessante perceber que existe também um conhecimento que reside na cultura de cada país, um conhecimento ancestral, que é igualmente científico. Moçambique, a exemplo de outras culturas, tem um saber que existe há séculos e que as populações foram apropriando, sem lhe chamar “ciência”, mas que tem base científica e tecnológica. É um saber transmitido de geração em geração. Por isso, podem surgir aqui novas máquinas agrícolas, novas formas de energia que são muito moçambicanas, que nascem dessa experiência local e não de outros países.
Em Portugal, por exemplo, temos uma cultura científica com raízes romanas e árabes, sobretudo no sul do país. É também um conhecimento ancestral. Isto quer dizer que o conhecimento científico – mesmo o moderno, ativo, empreendedor, atual – deve respeitar o saber de experiência feita, o saber das comunidades, que é próprio de cada lugar. E levar esse conhecimento ao entendimento do maior número de pessoas é, no fundo, o papel da cultura científica: proporcionar um conhecimento alargado e acessível ao conjunto da sociedade.
Quanto mais uma sociedade conhecer o conhecimento científico, os seus cientistas, quem são, que nomes têm, se são mulheres ou homens, que ciência produzem, que resultados obtêm, mais perguntas vai fazer. E isso é bom. Enche a sociedade de curiosidade, de vontade de compreender, e valoriza o conhecimento científico. É comum dizermos que a ciência está à nossa volta.
Na Ciência Viva, trabalhamos há três décadas em cultura científica e aprendemos muito, uns com os outros e com muitos países. E hoje, mais do que nunca, é verdade o que sempre dissemos: sem ciência, não há futuro.
Será que a inteligência artificial possibilita uma autorregeneração da ciência para além da intervenção ou da intencionalidade humana?
Na verdade, a inteligência artificial resulta da inteligência humana. E esse é um binómio que não podemos esquecer, pois diz muito sobre o trabalho dos cientistas, das mulheres e dos homens da ciência que se dedicam a essas áreas de ponta, áreas de fronteira, que se desenvolvem a um ritmo avassalador.
Há quem olhe para a inteligência artificial como uma ferramenta, algo que está ao nosso serviço, simplesmente. E esse “simplesmente” significa muito. Mas há também quem veja na inteligência artificial uma força, uma esperança ainda maior, a do próprio desenvolvimento. Como se essa inteligência se fosse autoalimentando, crescendo a um ritmo que, talvez, um dia, pudesse dominar o mundo.
São perguntas que estão no ar, e não podemos ignorá-las. Em ciência, como na sociedade, nada deve ser ignorado. É preciso conhecer, ler o máximo possível, compreender como é que estas coisas funcionam, da melhor forma, para nós e para a sociedade. E, de facto, tudo o que diz respeito a essas matérias está hoje numa linha de investigação acelerada.
O Pavilhão do Conhecimento tem desenvolvido várias parcerias internacionais. Que oportunidades identifica para o maior envolvimento de Moçambique e de outras instituições da CPLP nestes programas?
Pois é precisamente isso que nós mais gostamos de fazer: cooperações. Pertencemos a várias redes internacionais de museus e centros de ciência e participamos em projetos europeus de grande dimensão. Cada projeto tem, por exemplo, doze, dezoito parcerias, em países com os quais queremos e precisamos de trabalhar. E todos trazem para o projeto uma enorme riqueza de conhecimento e de cultura.
Gosto muito de repetir o que o professor Mariano Gago, fundador da Ciência Viva, costumava dizer: “Ninguém sabe o suficiente para fazer tudo sozinho”. Isso significa: aprendam com os outros, partilhem conhecimento. Porque quando partilhamos conhecimento, estamos, na verdade, a receber conhecimento de outros.
Por exemplo, hoje o Pavilhão do Conhecimento produz exposições interativas. Mas, para chegarmos a esse ponto, tivemos primeiro de aprender com quem já sabia e fazia há mais tempo. Fizemos parcerias com colegas da Finlândia, da França, da Holanda, e produzimos em conjunto exposições, colocando em comum não só ideias, mas também recursos financeiros, para tornar esses projetos possíveis.
Aprendemos muito. E hoje estamos, diria, ao nível dos melhores nestas áreas, em vários continentes, como produtores de exposições científicas. Portanto, o essencial é não estarmos fechados em nós próprios. Fazer parcerias é enriquecer o conhecimento, é ampliar horizontes, e, afinal, a ciência está à nossa volta e não podemos ignorá-la.
Num tempo em que o mundo se debate com a desinformação, que papel têm as escolas e os comunicadores de ciência na defesa da verdade e do conhecimento?
Isso é que é a pergunta de um milhão de dólares. Bom, a desinformação é resultado da superinformação que existe hoje em dia. A informação cresceu tanto, em tantos domínios, e a acessibilidade a essa informação aumentou de tal maneira que hoje vivemos mergulhados nela. Mas só passamos da informação ao conhecimento quando exercemos o nosso espírito crítico. Daí que a ciência, no seu olhar geral, é múltipla.
Não podemos olhar apenas para a STEM – ciência, tecnologia, engenharia e matemática –, temos que olhar também para as humanidades, para as artes, para a filosofia. Porque a filosofia ensina-nos a ser críticos, a questionar-nos. E, ao termos esse exercício de questionamento, estamos a fazer perguntas, a analisar um problema de vários ângulos, a procurar a confirmação daquilo que nos parece ser. Atingir a verdade do conhecimento é um processo difícil, muito difícil. E aquilo que os cientistas mais fazem é precisamente isso: conhecer por tentativa e erro.
Assumir essa postura dá-nos um olhar crítico que nos permite distinguir melhor o que pode não ser verdade. Repara que eu não digo “falso”. O falso é muito radical, mas “pode não ser verdade”. Temos que questionar. E como é que se faz isso? Buscando outras provas, ouvindo outras opiniões e, sobretudo, procurando factos. Fazer essa prova dos factos é fundamental.
E deve começar muito cedo, na escola. Até pondo os alunos em situações de análise noticiosa, perante uma notícia, em jornais, televisões ou rádios, para que pesquisem e percebam a veracidade. Que ângulo lhes dá mais segurança nesse conhecimento?
A escola é fundamental também por isso. Porque os professores são facilitadores de conhecimento, e isso não é pouco, significa muito. Significa que estão a dar ferramentas aos estudantes para que sejam eles próprios a procurar o conhecimento, enquanto o professor acompanha, observa, orienta. É, de certa forma, um vigilante permanente.
Esse é o processo que hoje chamamos de Inquiry-Based Science Education, o conhecimento pelo questionamento. É um método que já não tem nada a ver com o modelo tradicional do “professor fala e os alunos recebem”. Eles facilmente se aborrecem. E o que queremos nas escolas, nas salas de aula, são alunos mais felizes, mais abertos, mais amantes do conhecimento. Distinguir as notícias falsas do verdadeiro é um processo de alerta, e é isso que eles aprendem.
Que desafios têm marcado a sua trajetória na direção do Pavilhão do Conhecimento, atualmente?
A questão é que não é só no Pavilhão do Conhecimento, é na Ciência Viva em geral. Porque a Ciência Viva é uma agência nacional para a cultura científica e tecnológica. É como um chapéu debaixo do qual nós criamos as redes. As redes são de museus e centros de ciência, como é o Pavilhão do Conhecimento, que é, digamos, o mentor de toda a rede.
Eu presido à agência Ciência Viva e dirijo o Pavilhão do Conhecimento. É lá a nossa sede. E depois temos as redes que são, de facto, o mais importante do nosso trabalho. O maior desafio que eu tenho é manter essas redes vivas.
Criá-las, eu não vou dizer que é fácil, também leva muito tempo. Mas fazemos, mais uma vez, com a ajuda das autarquias, do poder governamental nacional, das universidades, das instituições científicas… Não fazemos esse trabalho sozinhos. Criar essas redes, quer sejam as das escolas, dos clubes Ciência Viva na Escola, das quintas Ciência Viva, ou dos centros Ciência Viva, é essencial. Os centros funcionam como hubs, como núcleos fortes de apoio a todos os outros projetos que temos em todo o país.
E por que é que isso é um grande desafio? Porque as redes precisam de uma liderança. E, de facto, eu exerço essa liderança a nível nacional, mas é uma liderança que respeita as direções dos centros Ciência Viva. São pessoas muito qualificadas, os diretores desses centros, e ao mesmo tempo que respeitamos as suas direções, temos que ir alimentando a rede. Alimentando de projetos, de ideias, garantindo formação contínua, partilha de informação, de projetos, de verbas que vamos buscar a esses múltiplos programas.
Portanto, é um desafio permanente. É como se, ao deixarmos de dar atenção a uma das áreas, outra ficasse mais debilitada, ou deixam de avançar ao mesmo ritmo. Os centros Ciência Viva são avaliados, há todo um processo de monitoria da qualidade. E já aconteceu, quatro vezes em toda a rede, termos centros que saíram da Ciência Viva porque não estavam a fazer um trabalho de qualidade.
Mas é uma rede que continua a crescer, e isso dá-nos um enorme gosto. Ainda assim, é uma rede que precisa ser constantemente olhada, atualizada, melhorada e liderada. A diversidade dos projetos, o ritmo, a vitalidade de cada um… tudo isso são desafios permanentes.
E depois sabemos que trabalhar com pessoas é, por si só, um grande desafio. Eu acho que é dos tesouros maiores que nós temos – as pessoas que trabalham connosco –, mas também é, realmente, o maior desafio.
Anunciou, no auditório, que a Ciência Viva vai oferecer à EPM-CELP um módulo de exposição. Que mensagem gostaria de deixar à comunidade escolar, especialmente aos jovens que sonham seguir este caminho de investigação e descoberta?
Olhe, eu posso deixar uma mensagem, mas é curioso que essa mensagem não vem de fora para dentro, não sou eu que a trago. Eu descobri-a aqui. Porque vejo professores empenhados, muito dedicados e sorridentes. E acho que professores assim vão fazer com que os estudantes que têm à sua frente aprendam de uma maneira mais feliz, mais integrada, com mais vontade.
Portanto, aquilo que é mais importante – a motivação, a curiosidade, as perguntas que os jovens fazem no auditório, a forma como todos se cumprimentam aqui dentro – já é um trabalho feito, é um caminho andado. É sinal de uma escola com todas as condições para progredir cada vez mais e para se adaptar, porque a inteligência está precisamente nisso: em estarmos constantemente a adaptar-nos a situações novas. E esta escola está nesse movimento contínuo.
Claro que a Ciência Viva tem aqui um Clube Ciência Viva na Escola, e aquilo que mais gostamos é de colaborar e partilhar. Por isso, quando dizemos que vamos oferecer um módulo interativo à escola, lembro-me logo do Mundo ao Contrário, porque o mundo ao contrário é intrigante, mas é verdade que nós somos os pilotos de uma grande nave, que é a Terra. Todos nós somos astronautas da Terra. E, como astronautas da Terra, temos que olhar para este planeta, que está em desenvolvimento e, em algumas áreas, a pedir socorro. Sabemos que a biodiversidade é uma delas.
A escola está sempre voltada para o exterior, e ter um módulo desta natureza, intrigante, vai fazer pensar quem cá entrar. Essa é a ideia. Mas claro que, tanto a senhora diretora, a professora Luísa Antunes, como a responsável do Clube Ciência Viva na Escola, a professora Helena Correia, são muito exigentes e não se vão contentar só com um módulo. Acho que vão querer mais, e nós vamos discutir isso com muita alegria e muita vontade.